Quando o perfeito se repete, deixa de ter significado.
Quando a repetição acaba, há uma valeta.
Quando a valeta chega ao fim, tudo normaliza.
Quando o normal é frequente, torna-se monótono.
Quando a monotonia acontece, nada nos anima...
Era daqueles dias em que, na noite anterior, tinha “enfardado” um excelente “Cozidinho à Portuguesa”, uma magnífica “Lagosta” e um inigualável “Pão-de-ló”.
Acordei cedinho com os roncos da minha zona abdominal. Para não fazer muita pressão nesse local, de modo a que não houvesse “estragos”, rebolei-me sobre o meu lado direito até à pontinha mais costeira da minha longa cama de casal. Alcançada a meta, empurrei as pernas, uma a uma, para fora do ninho. Já com metade do corpo de fora, mas sempre em posição rectilínea, tentei calçar as enormes pantufas cor-de-mel.
Vinha, de seguida, a acção mais complicada: pôr-me de pé. Fui escorregando, o mais horizontalmente possível, até só ficar apoiado pelos ombros na periferia direita do colchão. Com os braços dormentes e sem força, resultante de uma curta noite de sono, tentei erguer-me em direcção ao céu. Duas e três tentativas falhadas, mas, à décima quinta vez, consegui!
Com metade do objectivo cumprido e com o dobro da pressão intestinal, arrastei-me até ao segundo piso, a passinhos curtos para não dar azo a incidentes, em direcção à casa de banho. Cada degrau parecia-me mais alto do que o anterior; aquela escadaria não tinha fim! Agarrado ao corrimão com ambas as mãos, subi a última montanha.
No andar de cima, pouco faltava… Restava-me passar pelos três quartos de hóspedes, pela super-arrecadação, que mais se aproxima de um armazém, e pelo escritório pertencente ao pai, à mãe, ao primo, à tia, ao tio e sobrinhos e, por fim, ao canário.
Continuei a caminhada sempre hirto e de cara franzida.
Dobrando a esquina do escritório, avistei a porta de madeira-velha que se encontrava fechada. Marchei a passada estreita para a enfrentar.
Encostei-me à parede, de costas, sobre o interruptor, para um último suspiro de cansaço:
“-Ei! Quem apagou a luz?!?!” - ouviu-se de lá de dentro.
Rodei o puxador com vigor, puxando e empurrando aquela barreira para o meu tão esperando mundo:
“-Tem pena de mim!!! Despacha-te, quem quer que tu sejas!!!” – exigi ao “fantasma”.
Ouviu-se o autoclismo em alto e retinido som. Era o meu passaporte!!!
Muito lentamente, rodaram o puxador, no outro lado. Abriu-se a porta como nas casas assombradas, apenas faltava a musiquinha de terror…
Assim que vi um braço, puxei-o com força e entrei eu. Era a minha vez!
Tranquei a fechadura a sete chaves, abri a janelinha para que aquela fragrância desaparecesse e senti-me nas sete quintas…